2004-11-04

A ressaca

Tal como hoje escreve Jacinto Lucas Pires n'A Capital (ler em comentário anexo), é assombrosa a vitória. É o conservadorismo, o medo, a "mudança" na continuidade que prevaleceu nos 51% de votantes em George W Bush. A recondução do presidente dos EUA é, como já referi anteriormente, totalmente do meu desagrado. No entanto, tal resultado não me é de espantar. Facilmente as máquinas de propaganda política fazem o seu trabalho, as mensagens que passam são aquelas que muitos preferem ouvir, as ideias são "elaboradas" para agradar, intensificar posições. O individualismo colectivo americano sobrepõs-se à cooperação, à boa amizade, quando os EUA têm todo o potencial para fazer o bem pelo mundo. Mas isso são conversas já discutidas.

A disputadíssima corrida eleitoral, mesmo que o resultado fosse inverso, punha qualquer candidato pressionado pelo campo oposto. Mas será que quem votou Kerry, se as coisas continuarem a não correr pelo melhor, continuarão a intervir civicamente, à parte os pedidos de unificação de uma nação que ficou crispada com as diferentes opiniões e ideias nesta luta presidencial? O que é certo é que a divisão política nunca foi tão grande.

Diz-se que um segundo mandato - sem a pressão de recandidatura (afinal governa-se para o povo ou para os resultados?) - será forçosamente diferente. Melhor política externa e interna; reformas sociais e económicas; atitudes cooperantes. Espero bem que sim. Mesmo que quem lá esteja não mereça a nossa confiança - Santana ex aequo - gostamos de pensar que farão o seu melhor para o melhor. Pensar que "quanto pior melhor" é não ser racional e ser egoísta. Claro que às vezes apetece dizer "eu avisei-te...", mas o pensamento positivo terá de prevalecer. Afinal, não devemos ser todos nós a tentar construir um mundo melhor?

5 comments:

  1. "A assombrosa vitória de Karl Rove"
    Jacinto Lucas Pires 
    A Capital, 04 Nov 2004

    Conseguir que um presidente que, na questão do terrorismo, oscila entre a não-reacção apatetada (Bush na escola ao saber do ataque às torres do World Trade Center) e a promessa não cumprida («apanhar Bin Laden vivo ou morto»), que faz uma guerra com base em mentiras descaradas (as tristemente famosas armas de destruição maciça) e à revelia do direito internacional, que adopta uma postura de arrogância unilateralista confundindo força com razão e poder com autoridade, que atravessa escândalos gravíssimos como o abuso de prisioneiros na prisão de Abu Ghraib ou o desrespeito sistemático dos direitos fundamentais dos prisioneiros em Guantánamo sem tirar consequências apropriadas, que não assina o protocolo de Quioto hipotecando ainda mais o futuro do planeta, que defende um liberalismo puro e duro fazendo o Estado (já tão "mínimo" na versão norte-americana) recuar em áreas fundamentais como a saúde ou a educação, que, em geral, demonstra uma visão mesquinha e maniqueísta do mundo, além de ser uma anedota como actor político, conhecido mais por um interminável rol de gafes do que por qualquer fugaz indício de grandeza - conseguir que um presidente assim seja reeleito (mesmo na "América", onde parece que tudo pode acontecer) é um feito incrível, verdadeiramente assombroso (adjectivo que traz consigo a palavra sombra). O marionetista que está por trás deste sinistro sucesso é Karl Rove, estratega da campanha de Bush. Foi ele quem levou George W. ao colo. Quem sentir vontade de aplaudir, aplauda-o a ele.

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  2. Garal Roveje diz:

    Amigo Zarp,

    Tenho esperado ansiosa e pacientemente o teu comentário aos resultados das eleições norte-americanas. Devo dizer-te qu não me surpreendeu. Com efeito, foi de tal maneira ponderado que apenas reflectiu a tua sobejamente conhecida capacidade intelectual e moral. Nem parece - digo-o com amizade - escrito pela mesma pessoa que escreveu o "Contra Bush", mas a verdade é que o calor pré-eleitoral afecta-nos a todos. O Lobo-Mau (a quem deixo um abraço) que o diga. A propósito Zarp, queria aproveitar a tua intervenção tipo "pedra sobre o assunto" com que nos presenteaste e que pôs fim ao já moribundo debate que levava com o Lobo-Mau, para deixar uma questão no ar. Será que a ONU como existe é e/ou deve ser o fiel da balança de um Mundo mais justo? Um Mundo que, como bem o disseste, já não é o mesmo da Guerra-Fria e que tem na ONU os vencedores da II Grande Guerra?
    Voltando à vitória da democracia. Sim, independentemente de quem ganhasse, os EUA deram uma lição de democracia representativa. Quem nos dera ter uma adesão daquelas às nossas urnas... Independentemente de quem ganhasse, a política americana continuaria a ser a mesma. Ninguém convenceria Kerry a adoptar políticas segundo os interesses europeus. Se o nosso interesse comum mais emergente é o combate ao terrorismo, temos TODOS de participar. Agora, o que isso não pode significar é que se tenha de ouvir e obedecer aos que estão sempre do contra. Aqueles para quem "quanto pior, melhor...". O combate ao terrorismo passa pela melhoria das condições de vida dos povos do Médio Oriente. Como fazer? Dar dinheiro aos regimes ditatoriais que existiam nos vários países? Dinheiro (petróleo) têm eles de sobra. E o povo continua na miséria. Era absolutamente necessário mudar os regimes e instituir democracias. Ora, se em alguns países isso pode fazer-se de baixo para cima (como deveria ser sempre), noutros é impossível. Que o digam os Curdos que tentaram derrubar Sadam após a 1ª Guerra do Golfo. Se o Iraque tiver servido de exemplo para os outros regimes opressores do Médio Oriente e se conseguir mudá-los pacificamente, tanto melhor. Se não, com mágoa teremos de enfrentar a possibilidade de utilizar novamente a força noutros países. E esse esforço cabe a todos. Também à Europa. Contra os ditadores! Pelos muçulmanos livres! Lembrem-se do que eram as críticas de toda a Europa quando os EUA bombardeavam o Japão. E agora é um país livre e evoluido...

    Desculpa Zarp. Já me alonguei muito. A continuar assim, ninguém mais lê o teu Blog.

    Com amizade,

    Garal Roveje

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  3. Daniel Carrapa
    abarrigadeumarquitecto.blospot.com
    04.11.2004

    Encruzilhada. Um homem promete atravessar o trilho da tempestade e dos perigos. Outro homem aponta a direcção de tempos melhores e um caminho de esperança. Os americanos decidiram seguir o primeiro homem, só porque garante ter o guarda-chuva maior.
    Deus os abençoe.


    Miguel Sousa Tavares
    Público, 05.11.2004
    "Acontece, sim, é que os valores hoje dominantes na América não são os nossos - não apenas os da esquerda europeia, mas os de uma maioria substancial, sólida e antiga, de europeus que são tributários da história de Atenas e não da de Esparta. Perceba-o ou não a senhora, na Europa em que nos revemos, não discriminamos os homossexuais, não colocamos o aborto na clandestinidade, não defendemos que os ricos paguem os mesmos impostos que os pobres, não defendemos a liquidação da função social do Estado, não misturamos a política com Deus, não aceitamos o sistema penal de Guantanamo, não defendemos a pena de morte e, além do mais, não invocamos nenhum mandato moral ou divino para impor estes valores aos outros."

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  4. Caro Zarp,

    obrigado por transcreveres uma citação minha. Também me revejo inteiramente nas tuas palavras. Na ressaca destas eleições também eu me confronto com pensamentos muito diversos. Uma das coisas que me questiono é imaginar se hoje acontecesse algo semelhante ao 11 de Setembro, como reagiriam os Europeus. Será que iriamos sentir a mesma solidariedade com os americanos, ou sentir-nos-iamos afastados pelo rumo que agora decidiram seguir? Receio que estas eleições contribuam ainda mais para que nos afastemos daquele povo. E no entanto, temos de compreender que gostemos ou não da América, eles continuam a marcar a passada de muito daquilo que se passa no mundo e também na Europa. Seremos assim tão diferentes deles? Também nas nossas democracias, não estará a vingar o populismo e o simplismo de argumentos, a discussão política reduzida ao mínimo denominador comum do que o cidadão médio pode compreender? A política reduzida ao slogan, a moral reduzida à sua aparência?
    E no entanto, o debate continua também nessa América. Algumas das reflexões mais ácidas que tenho lido vêm exactamente desses americanos desiludidos e assustados com o rumo que o seu país está a seguir. E por isso, e por eles, também penso que não podemos afastar-nos da América. Resta-nos assim a esperança, sem garantias. Sempre foi assim, não é agora que devemos desistir.

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  5. "A América que não muda"
    Por José Pedro Zúquete
    Quarta-feira, 10 de Novembro de 2004

    Nas eleições George W. Bush conseguiu obter mais votos do que qualquer outro Presidente americano na história e teve mais sete milhões de votos do que em 2000. Para muitos o choque foi tremendo. Inconsolável, o semanário "Boston Phoenix" vestiu-se de negro e anunciou o "luto na América". "Bush pode ter sido eleito Presidente, mas ele não é o nosso Presidente," anunciava, num misto de desdém e desespero, o editorial. Numa manifestação em São Francisco podiam ver-se cartazes que testemunhavam o que ia na alma de muitos anti-Bushistas da esquerda sofredora e "tolerante": "Que se lixe a América do meio!" "Como é que é possível?" afirmou atónito um manifestante, "eu pensava que toda a gente odiava o Bush!" Tudo isto faz lembrar a história da crítica de cinema do "New Yorker" que, em 1972, ao saber da derrota de McGovern, afirmou espantada: "Eu não percebo como é que Nixon ganhou. Eu não conheço ninguém que tenha votado nele."

    Após a reeleição do Presidente, muitos são os que não entendem como é que uma "verdade sagrada", um "dogma absoluto" como o da "estupidez, incompetência e o perigo" que George W. Bush representa, não seja partilhado pela maioria dos cidadãos. Como é que é possível esta evidência escapar a tantos? A resposta a esta questão passou a ser sempre uma, às vezes dita abertamente, outras de forma implícita: "as pessoas não pensaram, deixaram-se levar por instintos". Tudo então fica explicado e a "intelligentsia" pode então suspirar de alívio, segura de si própria e confortavelmente instalada no conforto da sua superioridade moral e nos confins da arrogância intelectual dos sábios. Assim, passou-se a falar do "medo" que levou as pessoas a votar, na "superstição, eterna inimiga da razão" dos evangélicos e, como não poderia deixar de ser, na "ignorância" do homem comum. Claro que a verdade é muito mais complexa.


    Ao contrário do que se possa pensar, a reeleição do Presidente americano não representa nenhuma "viragem" ou a consagração de uma nova América. Pelo contrário, Bush ganhou porque a América não mudou. Existem alguns mitos na praça pública que importa rebater. Por exemplo, muitos são aqueles que falam da "perigosa colaboração" entre religião e política na sua Administração. Ora, isso não constitui nenhuma novidade porque desde o início da história americana que a política abraçou a religião. A Constituição é uma autêntica Bíblia, sob a alçada de Deus, e aqueles que a redigiram tornaram-se em autênticas figuras "sagradas." Desde o início que houve a separação da Igreja e do Estado o que levou a que a religião passasse para a esfera da sociedade civil e tivesse que "competir" para sobreviver, tornando-se no processo muito mais dinâmico e vibrante que a religião na Europa.


    O carácter pioneiro da América reforçou a componente religiosa da experiência americana, onde tantos apostaram tudo numa nova vida de liberdade numa terra que parecia "prometida." Lincoln referiu-se ao povo americano como este "povo quase eleito" e numa frase que revela esse carácter messiânico da América, proclamou-a como "a última, e a melhor esperança na terra." Esta ligação entre Deus e liberdade, entre democracia e religião não constitui nenhuma aberração, mas faz parte da espiritualidade americana. Não estranha, portanto, o verdadeiro proselitismo americano, de "missão e conversão" em prol da democracia. "A América é a nação indispensável" afirmou Madeleine Albright em 1998. O discurso de Bush e a intenção de converter o Afeganistão e o Iraque à democracia, entendida como antídoto ao islamismo, reflecteesta componente fundamental de religião civil.


    "Os democratas cederam aos republicanos o monopólio do repositório moral e espiritual da política americana," disse Michael Sandel, de Harvard. Este é seguramente dos comentários mais perspicazes na análise dos resultados eleitorais americanos. E essa "cedência" dos democratas nota-se não só na política externa (longe vão os tempos da "nova fronteira" de John F. Kennedy), mas também na política interna. Os democratas são cada vez mais encarados como elitistas, seculares, distantes da América profunda e em choque frontal com os valores que fundaram a América, "one nation under God."


    A razão pela qual os democratas estão a perder essa guerra dos valores tem as suas raízes na promoção da contracultura radical dos anos 60. Muitos desses jovens rebeldes são hoje os "donos" dos media, de Hollywwod, das universidades e dos tribunais americanos. E é aí que a guerra cultural continua pois a percepção é a de que os jornalistas, os professores, os "artistas" e os juízes estão a "empurrar" uma cultura muito mais secular e a tentar impor uma nova moralidade que, em muitos casos, assemelha-se a puro niilismo. Quando John Kerry afirmou que "a alma e o coração da América encontra-se em Hollywood" limitou-se a acelerar a percepção dos democratas como o partido no lado errado da guerra cultural. É neste contexto que as polémicas à volta do aborto e dos "casamentos gay" ganham significado. Contribuíram para o desfecho eleitoral, mas não são a causa da reeleição do Presidente.


    Em última análise, George W. Bush, para a maioria dos americanos, personifica esse repositório moral e espiritual americano. Quando Bush afirma que a liberdade "é um dom de Deus para todos os homens" ele está a falar directamente a esse credo americano em que a democracia é sentida, vivida e proclamada como uma autêntica religião. Quando Bush a luta ao terrorismo como um desafio moral e de gerações, que implica não apenas "apanhar os malfeitores" mas redesenhar o mundo, neste caso o Médio Oriente, ele está a ser o intérprete do carácter messiânico da nação americana. Esse tal carácter que levou a uma total redefinição do papel do Japão no mundo, à reconstrução da Alemanha e ao lançamento das condições que permitiram o nascimento de uma nova Europa. E nada é mais especificamente americano do que persistir na convicção de que a democracia, o "Bem", é a resposta adequada ao "Mal", neste caso, o fundamentalismo islâmico.


    Não obstante todas as dificuldades e contratempos, nomeadamente no Iraque, e da campanha anti-Bush nos media e na comunidade "artística", grande parte dos americanos continua a ter confiança no seu Presidente, a apoiar a sua perseverança e a partilhar do seu optimismo. Porque reconhecem-se na "mesma América", essa América que constitui um misto de fé, moral e uma convicção inabalável de que esta é mesmo a "terra dos livres e dos corajosos." Essa América que não muda. Universidade de Boston

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