2006-02-10

Democracia x Dogma VI

Desatentos
"As pessoas, mesmo atentas, não parecem dar-se inteiramente conta de que se está a passar, ou a evidenciar, algo decisivo e inédito: a entrada oficial em guerra contra o Ocidente. Tornou-se patente que o terrorismo se está a converter num habitus, numa segunda natureza, senão já na primeira, da alma árabe-muçulmana. Melhor dito, nem de terrorismo se trata: tornou-se patente que quem nos quer destruir não tem a menor ideia da justiça, ainda a mais frustre, está mundos atrás do próprio Talião: se acho que me ofendes porque troças da barba do Profeta (ou porque me olhas de viés, já está a acontecer), tenho automaticamente o direito de desejar a tua morte, assassinar-te, em qualquer circunstância - kill é o verbo que mais se lê nos cartazes -, sem qualquer consideração de proporcionalidade entre o mal que acho me fazes e a violência da minha resposta. Assiste-me ainda o direito não menos absoluto de convidar a minha tribo a amplificar o meu gesto. Em perfeita boa consciência, como estamos a ver, sem precisão de qualquer Al-Qaeda atrás. Para Portugal é um triste dia, já que o primeiro-ministro não parece disposto a demitir o seu ministro dos Negócios Estrangeiros."

Fernando Gil, filósofo


Senso comum
"Que algumas manifestações tenham sido organizadas não deve surpreender-nos, porque já se sabe como é fácil. E também não me surpreendeu a violência com que se deram. O que me apanhou mesmo desprevenido foi a irresponsabilidade do autor ou dos autores dos desenhos. Alguns opinam que a liberdade de expressão é um direito absoluto, o único direito absoluto que existe, enquanto todos os outros são relativos. A realidade crua impõe limites. Imaginemos que o desenhador dinamarquês, em vez de fazer um desenho a ridicularizar Maomé, faz um dizendo que o director do jornal é um imbecil. Seria muito corajoso, mas no dia seguinte estaria provavelmente na rua. [... Autocensura?] Não se trataria de autocensura, mas de usar o senso comum. Numa situação como a que vivemos, e conhecendo a susceptibilidade que há em redor destes temas, o senso comum ditar-nos-ia o que fazer. Alguém verdadeiramente responsável que tivesse consciência de que um desenho pode ser como lançar gasolina sobre o fogo, guardá-lo-ia para melhor ocasião."

José Saramago, escritor
Excerto de respostas ao El País

No comments:

Post a Comment