2007-03-23

Grandes Portugueses-IV

Choque de titãs
Na edição deste mês da revista Atlântico, Rui Ramos no artigo "Manual do Eleitor dos 'Grandes Portugueses'" destaca que "o facto de Salazar e Cunhal não terem sido democratas não lhes tira o direito de serem Grandes Portugueses. D.João II foi um assassino, e Pombal o mais violento e ganacioso tirano da história portuguesa, e isso nunca conseguiu perturbar os glorificadores de cada um deles." Duas faces de uma mesma moeda, a némesis um do outro, Oliveira Salazar e Álvaro Cunhal marcaram quase todo o século XX. Fico curioso, terão eles se encontrado cara-a-cara alguma vez?

Consigo imaginar a cena, clássica, negra e intimidante. Cunhal está nos calabouços da prisão de Peniche. Escura, fria e húmida a confinante cela não reduz o líder comunista. As paredes transpiram a adversidade daqueles tempos negros da luta clandestina contra o Estado Novo, enquanto que a Europa se reconstruía sobre as cinzas terríveis após a luta pela liberdade contra a tirania nazi. Ouvem-se passos no corredor. Cunhal não levanta os olhos da mesa onde abundam desenhos de contornos vorazes e mensagens fortes. Ao seu lado esquerdo uma edição inglesa de King Lear aberto algures a meio. Com concentração escreve sobre folhas de papel de carta as mesmas palavras de Shakespeare no idioma de Camões. A porta abre-se e o guarda afasta-se para, de entre a penumbra surgir uma figura tão familiar quanto sombria, elegante quanto repugnante. É Salazar.
- Vejo que não cessa de trabalhar, meu caro.
- Não creio que o senhor tenha algum prazer em ver-me deste modo - responde-lhe Cunhal voltando os olhos novamente às palavras escritas
- Pelo contrário Senhor Doutor, pelo contrário; 'mente sã em corpo são' é o que eu defendo.
- Neste antro, pelo menos consigo que a mente se mantenha sã. Que me quer?
- Trata-se de uma visita de cortesia, tão somente.
- Duvido que a sua cortesia, que não nego, seja motivo suficiente para o tirar de São Bento para vir até aqui tão longe. E estes ares não lhe fazem bem.
- Meu caro Cunhal...
- Se lhe sou caro, deva-me mais respeito. Ou melhor, a Portugal.
- Mas é por isso que aqui está. Pelo país. A sua... como direi, eloquência é talvez um pouco nefasta para o povo.
- Pelo povo o Estado Novo nada faz. A opressão que lidera apenas o diminui.
- Ora, ora, não seja assim tão agressivo. No fim de contas ambos pretendemos o melhor para Portugal, embora de pontos de vista muito diferentes é claro.
- Creio que sabemos bem o quão diferentes somos. E não é a sua visita que me fará mudar de ideias.
- Nem nunca presumi que fizesse. Não me julgue assim tão ignóbil apenas por saber fazer contas e possuir algum faro político, se me é permitido dizê-lo. Não pense também que me dá prazer vê-lo aqui, nestas condições. Mas os factos falam por si. E eu não posso permitir que ponha fim ao que de tão difícil me levou a construir. Ponho em cheque a sua sobrevivência neste ambiente hostil, mas é pelo bem da Nação.
- A minha sobrevivência prende-se no amor à liberdade e às minhas convicções de que há um Caminho Novo para melhorar as condições de vida do povo português.
- Se for como o seu camarada Estaline tem feito, não auguro nada de muito melhor. Mal por mal, fiquemos cá pelo que temos, honradinhos e sossegados. Devo-lhe mais respeito e honra que muitos líderes europeus. A minha admiração por si não impede contudo, que tenha de fazer opções duras, mas necessárias.
- Os seus sentimentos a mim nada me interessam. Com elegância devo dizer-lhe que o repudio, e mais cedo ou mais tarde, estarei eu do outro lado destas paredes que o senhor e o seu regime construiram sobre Portugal. A sua inédita visita dá-me a oportunidade de ver claramente nos seus olhos que o senhor professor não é o salvador da pátria. Os seus olhos mentem. Os seus olhos são frios. Sinto-o mais aprisionado que eu. Eu sou livre! E enquanto for vivo livre serei sempre, nada nem ninguém me fará quebrar. Não serei o desejado D.Sebastião, mas eu e os meus camaradas acreditamos numa sociedade nova, livre, democrática e desenvolvida. Pode demorar anos, décadas até, mas eu estarei cá para ver as ruas cobertas de flores e alegria pela liberdade enfim chegada. E o senhor, Dr Salazar, cairá, terá o seu fim - triste, solitário e fatal.
- Não o via tão caústico. Acredite numa coisa: enquanto eu fôr vivo, eu condicionarei a sua vida. Não se esqueça disso.
- Todos os dias - contrapõe Cunhal olhos fixos no de Salazar. Mas não se preocupe, eu durmo sempre bem.
- Tenha uma boa noite então, Dr Cunhal. Espero vê-lo novamente.
- Não conte com isso.
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