2007-03-23

Grandes Portugueses-II

Eu votei Padre António Vieira
Ficou em 33º, abaixo de Luis Figo e Marcello Caetano... Foi um dos primeiros defensores dos direitos humanos e da diversidade e identidade cultural dos povos - nomeadamente os índios do Brasil para onde viajou 7 vezes. Com tenacidade, frontalidade, espírito livre e audaciosa clareza, esta figura maior do séc. XVII marcou com as suas acções e os seus históricos e famosos sermões, no seu tempo até hoje. Personagem fascinante como Fernão Mendes Pinto (88º) e Gil Vicente (83º), o Padre António Vieira é uma das maiores figuras da humanidade.

A lista dos 90+ contém nomes de extraordinário e valor. Na Política Rei D.Dinis (24º), Maria de Lurdes Pintasilgo (36º), Rei D.João I (37º), Rainha D.Maria II (71º), Afonso Costa (73º), Fontes Pereira de Melo (74º). Na Cultura Professor Agostinho da Silva (21º), Eça de Queirós (22º), Florbela Espanca (34º), Sophia de Mello Breyner (38º), José Saramago (44º), Bocage (78º), Natália Correia (86º) marcante também politicamente, Damião de Góis (92º), António Lobo Antunes (82º), Miguel Torga (85º). Nas Descobertas Fernão de Magalhães (35º), Afonso de Albuquerque (42º), Pedro Álvares Cabral (49º). Na Ciência Pedro Nunes (32º), António Damásio (41º), Manuel Sobrinho Simões (77º).


A subjectividade de ser Grande
A "eleição" do maior português tem outros motivos de curiosidade. À luz do nosso tempo, por exemplo, o Marquês de Pombal é quase um herói, com direito a estátua bem no centro da capital. Mas no seu tempo e nos anos seguintes terá sido assim? Ministro todo-o-poderoso do reino foi responsável por tantas boas medidas como por atrocidades. Um homem das luzes no empresariado e no desenvolvimento do país, na reconstrução de Lisboa. Um homem das trevas quando foi responsável por tantas mortes e conspirações, entre as quais a eliminação de praticamente toda a linhagem Távora, que com requinte e malvadez da época, foram chacinados em praça pública. Prodedimentos não muito diferentes da contemporânea Revolução Francesa, onde a execução se pretendia mais civilizada, mas não menos cruel. A morte de D.José foi a única hipótese para o seu afastamento imediato, relegado ao seu cantinho em Oeiras onde foi esquecido em ódio dos demais. Erguer-se-ia uma estátua então? Para o degredo quem ousasse tal sugestão. E esta linha de pensamento tem a ver com outro "candidato" mais próximo de nós: Salazar. Presente na memória de muitos e na matriz do país ainda, o líder da única ditadura não militar do século XX europeu terá, trinta anos após a Revolução dos Cravos teria direito a uma estátua? Todas as que haviam foram derrubadas ou armazenadas, e hoje é absolutamente certo que nunca verão de novo a luz do dia. Presos ao ódio ou ao formato politicamente oposto, essa possibilidade é inviável para Portugal. Mas, poderá sê-lo daqui a duzentos anos? Repetir-se-à o sucedido com Pombal? A História é por vezes vulnerável aos momentos políticos e a memória condicionada ou reformulada de acordo com contextos por vezes contrários à neutralidade histórica. Quando a memória do Salazar-ditador desaparecer, tornar-se-à ele num Grande Português sem quaisquer dúvidas?


O efeito Salazar
Mas as discussões mais inflamadas até ao fim deste primeiro escrutínio centraram-se na omissão/existência de Salazar nesta lista e na possibilidade de obter mais votos que o desejado/merecido. O que é certo é que obteve muito mais do que aqueles que em vida nunca recebeu. Os debates na TV tiveram quase todo o tempo sobre a memória e os ideais da democracia com a presença ameaçadora do velho de Santa Comba Dão. Recordo-me de Joana Amaral Dias do Bloco de Esquerda se afirmar indignadíssima e envergonhada se Salazar figurasse entre os 10+. O medo ainda existe, a sombra negra do Presidente do Conselho prosta-se sobre um país ainda marcado por 48 anos de Estado Novo, de ódio a um regime e à sua personificação opostos à actualidade. É notória que o país não soube reconstruir-se interiormente, fazer as pazes consigo próprio, enfrentar com mais serenidade um periodo histórico marcante e perturbante. E isso é tanto mais quanto mais votos Salazar obtiver. A memória curta é vulnerável ao branqueamento. A ignorância é susceptível ao imaginário. A frustração é permeável ao saudosismo. É ainda tão marcante a sua figura que dominou quase todos os debates e escamateou oportunidades de ouro para revelar as outras personagens. Mesmo que o modo de votação não seja universal como em qualquer eleição, ou numa representação por sondagem, a presença de Salazar paira ameaçadora nas consciências e nas memórias dos portugueses. Estarão estes tão esquecidos do que ele foi? Terão as novas gerações pós-25 de Abril noção do que representou a obscuridade do Estado Novo? Caiu a memória no lixo, ou será a mera ignorância dos nossos dias consequência da despolitização da sociedade e incompreensiva dos custos que a história recente teve sobre o país? Estas questões levantam sérias dúvidas sobre se o conceito de democracia é bem entendido, confrontado que está e contestado que é, na sua verdadeira e leal aplicação diária.


"se Salazar ou Cunhal não ganharem, o concurso há-de se esquecer duas horas depois"

Esta frase de Rui Ramos (in Atlântico) resume tudo. O desafio, a pertinência do debate, a perigosidade do resultado, a sedução do confronto, a ameaça da ideia, são chamarizes muito fortes para a conquista do espectador, das audiências, dos patrocínios. Afinal contra a lógica de uma real contextualização historiográfica, mas claramente a favor de um espectáculo televisivo de sucesso.
In the end there can be only one, eis a frase original retirada da série The Highlander/Os Imortais usada agora para rematar os cartazes de promoção. It's showbiz.

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