Ser ou não ser, eis a falsa questão
Esta última fase do "concurso" da RTP teve uma campanha publicitária que, directa e incisiva, é novamente redutora nos valores dos "finalistas" que se pretende confrontadores, mas igualmente, e talvez mais grave, insidiosa e insinuosa em contornos estranhamente depreciativos e básicos. Apela-se ao programa, investe-se na audiência do canal, mas transmitem-se ideias-adjectivo de mal ou bem, parvo ou herói, vai ou racha. Podemos vê-los nos MUPIs de todo o país o apelo ao "Decida você" num jogo semântico enganador e historicamente insólito, partindo de critérios genéricos que todos podemos pensar, mas relegando as figuras em questão a meros sinónimos desses dois adjectivos, condicionando afinal tudo aquilo que o programa pretendia ser: informar, discutir, esclarecer sobre indivíduos que fizeram a História de Portugal. Publicitariamente correcto e eficaz, mas historicamente e pedagogicamente errados. Afinal, será por estas duas alternativas que um ou outro terá mais ou menos votos? Juízos de valor, paixões ideológicas e votos militantes serão os condimentos para a votação final, fugindo sempre, aos contextos e factos históricos.
Daí que diversos historiadores - entre os quais os respeitadíssimos José Mattoso e António Manuel Hespanha - se reuniram em baixo-assinado contra este programa. Colocar em dictomias quando em muitos casos foram ambas, e como diz Fernando Rosas (um dos subscritores iniciais) "é a anulação da própria História". O texto começa assim: "Custa a crer que alguém em seu perfeito juízo, se lembre de perguntar se Aristides de Sousa Mendes foi melhor ou pior que D.João II e proponha decidir o dilema por meio do sufrágio popular". Continua criticando a ideia, o formato, o objectivo, o custo." A RTP "difundiu o boato que o vencedor seria Salazar e que, nas finais, ele se defrontaria com o seu grande adversário, Álvaro Cunhal. O programa atrairia assim o máximo das audiências." Prossegue afirmando que a RTP "tratou de simplificar o quadro histórico e de diluir o rigor das referências". Conclui lamentando "a desinformação e a manipulação em curso. A História de Portugal, nas suas complexidades e contradições, nas suas grandezas e misérias, seguramente merecia outra coisa".
As frases:
Afonso Henriques: Bom rei ou mau filho?
Agredir a mãe terá sido o pior dos males deste rebelde? "Criei eu um filho para isto" terá pensado D.Urraca. "Nem conseguiram ganhar o Euro2004 e o Vitória está na segunda divisão".
O que é certo é que, reaccionarimente podemos hoje dizê-lo, iniciou um país, a primeira matriz de ser português. O primeiro português de sempre.
Álvaro Cunhal: Solidário ou totalitário?
O ideal comunismo visava a solidariedade entre os povos. Mas entre vizinhos ou membros do partido é que talvez não. Cunhal foi o último estalinista, mas o mais intelectual dos políticos. A sua luta de vida foi uma luta única e, nunca se desviando dela, forjou a resistência ao fascismo, o maior opositor do Estado Novo.
O 25 de Abril foi o início do fim do mito Cunhal. Na sombra e frontalmente tentou implementar o que sempre defendeu, mas todos sabemos dos malefícios dos regimes comunistas. O maior português de sempre, não. A némesis de Salazar.
Oliveira Salazar: Salvador ou ditador?
Dor. Eis o que une as duas palavras. Ainda hoje, de diversas maneiras. Um homem do seu tempo que fez o país permancer tempo de mais no seu modo. A redefinição psicológica e social da sociedade foi formatada com o Estado Novo, com consequências nefastas até hoje. Redução da escolaridade obrigatória, coacção silenciosa sobre a população, censura, polícia política, ditaura fascista sui generis, guerra colonial. O maior português de sempre, nunca. A némesis de Cunhal.
Aristides de Sousa Mendes: Consciente ou desobediente?
Conscientemente desobediente. Acreditava em valores contrários ao regime do seu país. Pagou duramente por isso. Pelos seus ideais e princípios. É um dos "justos" de Israel. Fará isso dele um mero reguila? O mais justo português de sempre.
Fernando Pessoa: Inspirado ou alienado?
Se a genialidade de um escritor de craveira universal lhe dá o epíteto de alienado, apenas por ter vários heterónimos, cada um com identidades literárias únicas, então também eu sou alienado por que me apetece. O mais universal português de sempre.
Infante D.Henrique: Empenhado ou interesseiro?
Como diz? Estratégia e visão de expansão.
D.João II: Visionário ou torcionário?
Era o Principe Perfeito mas também o Tirano. Papel primordial na História do país e das Descobertas. O Tratado de Tordesilhas e toda a política secreta de expansão são elementos extraordinários de gestão política e estratégica. No século XV ainda os fins poderiam justificar os meios.
Camões: Poeta ou aventureiro?
Pensava que era coisa boa ser-se aventureiro. Então e as histórias de capa e espada, corsários e donzelas, viagens e batalhas não podem ser objecto de poesia? Obras-prima da literatura mundial. O maior poeta português de sempre.
Marquês de Pombal: Iluminado ou sanguinário?
Ambas. Mas a sua "iluminação" não fez tudo sozinho. Hoje tão branqueado como a peruca da época. O mais poderoso político português de sempre.
Vasco da Gama: Descobridor ou corsário?
Os meios sempre justificaram os fins. Os fins perdoavam qualquer método. Outros tempos. Jack Sparrow nunca o conheceu. Mas o deu mais a Portugal e ao Mundo, que qualquer outro navegador antes dele, situando-se no pódio com Cristóvão Colombo e James Cook.
Documento ou propaganda?
Esta segunda etapa tem sido uma manipulação, particularmente quando se visionam os documentários coordenados e apresentados pelos seus "defensores". Não tendo visto todos, de dois posso dizer que foram quase abjectos. Mal realizados e filmados, pelo menos sem a qualidade que julgava exequível ao tipo de programa. A defesa de Afonso Henriques foi uma chatice (não consegui ver tudo) e, como li depois, com erros históricos e cronológicos. O de Salazar, apresentado pelo monocórdico Jaime Nogueira Pinto, igualmente fastidioso, foi chocantemente omissor de tanta realidade e factualidade, cinjindo-se apenas ao customeiro "salvou-da-bancarrota-e-da-guerra". Nada mais! Nem as eleições após a 2GM, nem a queda e a morte sequer! Isto não é expôr a História, é tão somente -afinal, defensores é mesmo o termo correcto - branquear a História. Como vem no texto do abaixo-assinado dos historiadores "mais parecia editado pelos serviços de propaganda do Estado Novo". E se isto se passou nestes programas, imagino nos restantes. Até onde terá Portas ido a defender D.JoãoII? Quanto terá Odete Santos "esquecido" sobre Cunhal? Terá Aristides de Sousa Mendes sido "endeusado" por José Miguel Júdice? Propaganda? No entanto tenho pena de não ter visto todos.
Manual do Eleitor dos 'Grandes Portugueses'
Todos nós somos feitos de boas e más acções. Ninguém é perfeito, e por isso ninguém pode ser unicamente o maior português de sempre. Podem valores tão díspares colocar alguém acima de outrém? O concurso é uma exacerbação de preferências assentes em juízos de valor somente. Muitos considerarão Afonso Henriques como o melhor porque somos o que somos hoje, mas simultaneamente o pior por sermos o que somos hoje. Na edição deste mês da revista Atlântico, Rui Ramos no artigo "Manual do Eleitor dos 'Grandes Portugueses'" explica a determinado passo que "Todos foram 'grandes'. Mas talvez não pelas razões que nós atribuimos à sua grandeza. Ao votar neles, estaremos a votar em figuras que reduzimos a simples cabides dos nossos devaneios e sonhos, a projectar no passado as virtudes que hoje apreciamos. Ora a história, aquela que é feita pelos historiadores, é precisamente feita ao contrário, de distanciamento, da descoberta de diferenças."
Rui Ramos prossegue com muita acutilância, ironia e humor quando elabora um quadro "Diz-me que és, dir-te-ei em quem votas". Exemplos: Funcionário Público - colega Artistides de Sousa Mendes; Taxista - Salazar, porque no tempo dele não se via este trânsito que é uma vergonha; Antifascista - Salazar, para poder ir à TV denunciar o perigo fascista; Anticomunista - Cunhal, para poder ir à TV denunciar o perigo comunista; Paulo Portas - D.João II, porque quer mesmo ganhar e precisa de todos os votos; Alberto Caeiro - Pessoa; Devasso arrependido - Camões; Blogger - Salazar ou Cunhal, para se poder indignar; Mário Soares - nenhum, ingratos!
E eu? Admiro imenso Aristides de Sousa Mendes, aprecio bastante Pessoa e Camões. Cunhal e Salazar são figuras fascinantes. Estes e todos os restantes davam óptimos filmes e séries de TV, fosse Portugal levado mais a sério. Não voto. Nenhum. Com todo este palavreado todo acham que ainda iria gastar €60+IVA?
Mas quem poderá ganhar? Domingo à noite é a "Grande Final".
2007-03-23
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