2004-06-18

referências de música IV > Mão Morta

Descobri Mão Morta já em idade tardia, mas felizmente ainda a tempo de apreciar o fulgor de uma banda de culto que ainda hoje perdura. "Nus" é o último albúm recentemente lançado, e demonstra, tal como nos anteriores, uma capacidade criativa assombrosa.
No entanto, dou agora destaque ao anterior "Primavera de Destroços", meu primeiro e verdadeiro mergulho num novo mundo sonoro, sem no entanto deixar de conhecer quase todo o repertório dos albúns anteriores.
A singularidade sonora e um conjunto de letras invulgares foram factores determinantes para me cativarem.
Adolfo Luxúria Canibal, figura-chave da banda, é o autor de todos estes fabulosos textos, e de uma atitude audaz e interventiva que muito aprecio.




Humano

Um casal de pegas rabudas faz o ninho em frente à minha janela - todas as manhãs sou acordado pelo seu intenso grasnar e fico a vê-las trazer pauzinhos com o bico - acho que é um sinal de boas vindas ter dois passaritos assim expostos na sua intimidade - é como se me dissesem "eis um bom lugar para começar tudo de novo, fazemos-te confiança..." - o marroquino do bar da esquina recebe-me sempre com um rasgado sorriso e um caloroso aperto de mão - de vez em quando oferece-me mesmo as bebidas - está outra vez a chover - chove muitas vezes - uma chuva miudinha, que mal se sente e que não impede ninguém de sair de casa - nestas alturas o céu fica pesado, cor de chumbo, a tocar os telhados - é quando eu gosto de ir à deriva, levado pelas sombras que aqui e ali afloram em determinadas ruas - no outro dia encontrei...
Não foi bem uma vista aérea, foi uma coisa estranha, como se estivesse em cima...
Uma espécie de aldeia em miniatura, que eu percorria por dentro estando fora...
É como se olhasse para as minhas botas e as visse dentro do meus pés, apesar de calçadas...
Era como se eu fosse maior do que o que sou - como se estivesse todo dentro de algo mais pequeno do que eu - dentro e fora em simultâneo, porque ao mesmo tempo que cabia lá dentro era maior do que aquilo em que cabia - uma espécie de ilusão física - de anulação do volume - ou de inibição do impossível - uma abstracção indizível...



Nada a perder


Tenho sempre uma garrafa para beber
E uma mulher para amar
Porque nada tenho a perder

Há uma enorme festa nas ruas
De vez em quando aparece a polícia e tenta prender
Matar toda a gente
Sobretudo quando nos aventuramos pelos bairros residenciais
Onde pessoas aterrizadas fingem que tudo vai bem
Encarceradas frente à televisão
Quando partimos uma montra ou saqueamos uma loja
Quando atacamos colunas de assalariados
O truque é ter um bom veículo para a fuga
Recolher rapidamente ao nosso território
Às ruínas
E partilhar os despojos

Há sempre uma garrafa para beber
E uma mulher para amar
Porque nada tenho a perder

Sei que um dia, mais cedo ou mais tarde
Também eu acabarei por morrer
Mas se hei-de esperar a morte na solidão do quarto
No conforto asséptico do isolamento
Antes então o gume da liberdade
Entregar-me à vida perdidamente

Há sempre uma garrafa para beber
E uma mulher para amar
Porque nada tenho a perder



Primavera de Destroços

Caio nesses olhos apáticos
Caio nesse hipnótico abraço
Desta viagem entre flores plásticas
E coloridas manhãs de aço

Viveremos tudo revoltosos
Nesta Primavera de destroços
Sem dor, sem rancor, sem remorsos
Nesta Primavera de destroços