2011-01-20

Crónicas de uma reflexão presidencial - II

O óbvio dos últimos cinco anos concretizou-se, pois um economista sem alma, pouco pôde. Não é que esperasse algo, mas Cavaco Silva e a sua frágil condição de mito, demonstrou que permanece como um sol enganador. A insustentável situação a que chegámos em parte ocorre pela sua conduta. Pelo conluio dissimulado da atracção fatal ao governo Sócrates. Na concreta realidade da posição presidencial e do símbolo nacional que o actual presidente não tem sido. Pela incapacidade individual para a mobilização colectiva, pela fraca defesa da identidade lusófona, pelo vazio internacional da sua presença. A sua tão propagada honradez e conhecimento dos dossiers nunca possuiram força suficiente para ocupar o cargo de presidente da república. Continuamos a não saber quais as suas ideias para além das economicistas, ora porque não responde, ora porque não as expõe. (Sim, está no site dele, mas não é a mesma coisa). Este mundo actual é o local ideal para políticos da sua estirpe, perdidos que estamos no economês que nos devassa os sentidos e a bolsa.

Há cinco anos atrás mobilizei-me a favor de Manuel Alegre. Pela inovadora candidatura de cidadania, pela fraternidade, pelos portugueses, por Portugal. Por aquilo que acredito que o poeta podia representar como impulsionador do património lusófono numa comunidade forte e global. Defendi com as palavras seguintes a crença num Presidente como "alguém íntegro e de espírito aberto, de convicções e livre, abrangente e fraterno, justo e patriótico (...) que seja símbolo do Estado mas acima de tudo da cidadania, da nacionalidade, capaz de representar todos dentro e fora do país com igual competência, serenidade e valor. Transmitir e invocar uma mensagem universalista e democrática, moderna e mobilizadora, os valores intrínsecos da nacionalidade e do respeito por todos, positivo e inovador."
Acontece que Manuel Alegre, em 2011, não se apresenta (tão) livre como afirma. As amarras que o prendem são lâminas traidoras de um projecto outrora feliz. A inevitabilidade do apoio PS e a "amizade" bloquista conferem politicamente a esta candidatura um estranho sabor de aliança conjuntural e hipocrisia escondida.
Na verdade, Manuel Alegre não deveria, como Mário Soares há cinco anos, ter refeito a sua candidatura. Por três razões muito concretas. Primeiro, pela posição que encetou na contenda anterior contra o PS. Segundo, pelo desbaratar do tão propalado "1 milhão de votos", plataforma fantástica para uma potencial regeneração da Esquerda. Terceiro, pela conveniência de um apoio partidário socraticamente envenenado.
Hoje, tão livre como o poeta, reconhecendo sempre o valor, carácter e simbologia política, não me vinculo (totalmente) à sua repetida candidatura presidencial.

Fernando Nobre, por todos conhecido, tentou levantar um movimento cívico à semelhança de Manuel Alegre. Tentando de certa forma ser um movimento grass-roots à maneira da candidatura de Obama, embora não tenha havido uma projecção generalizada, nem apoios, ideais para demonstrar com autenticidade uma proposta diferente. Em parte pelas fragilidades de comunicação do candidato e da sua equipa, em parte pela desvalorização elitista de uma candidatura alternativa. Não me constrange a sua inexperiência política, não duvido das suas intenções, aprecio mesmo algumas ideias e projectos, mas Nobre afirma a todos os ventos, por vezes em excesso, acções e políticas sobre os quais um presidente não tem controlo.
Mas como tenho tendência para a defesa de autonomias, desafios à norma, modos independentistas, alternativas e um profundo conceito de diferença, a sua candidatura apela a estes meus instintos. Agrada-me o desafio de outra barricada. Apraz-me a ideia de uma mudança inesperada.

E no entanto, permaneço absorto neste purgatório frio e cruel.


(Última crónica amanhã)
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