2004-07-06

Sophia

Quando eu morrer
voltarei para buscar
Os instantes que não
vivi junto do mar


"inscrição", in "Livro Sexto"


"A cultura é uma das formas de libertação do homem. Por isso, perante a política, a cultura deve sempre ter a possibilidade de funcionar como antipoder. E se é evidente que o apoio que deve à identidade de um povo, esse apoio deve ser equacionado de forma a defender a autonomia e a liberdade da cultura para que nunca a acção do Estado se transforme em dirigismo."

discurso na Assembleia Constituinte
Agosto 1975



Noite de Abril


Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera

Alguém que ela conhece.
E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.

"Obra Poética I"
Caminho


A Hora da Partida

A hora da partida soa quando
Escurecem o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida



O primeiro homem

Era como uma árvore da terra nascida
Confundindo com o ardor da terra a sua vida,
E no vasto cantar das marés cheias
Continuava o bater das suas veias.

Criados à medida dos elementos
A alma e os sentimentos
Em si não eram tormentos
Mas graves, grandes, vagos,
Lagos
Reflectindo o mundo,
E o eco sem fundo
Da ascensão da terra nos espaços
Eram os impulsos do seu peito
Florindo num ritmo perfeito
Nos gestos dos seus braços.


"Obra Poética I"
Caminho



Cada dia é mais evidente que partimos


Cada dia é mais evidente que partimos
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudades nem terror que baste.


"Antologia"
Círculo de Poesia
Moraes Editores
1975


O Rei da Ítaca

A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado


"O Nome das coisas", 1977

1 comment:

  1. AnonymousJuly 17, 2004

    "Cada dia é mais evidente que partimos..." como é lindo!
    Lindo também é o teu bebé.Que pena ter que vir à net para o ver.
    Espero que continues porq eu gostei muito.
    Com um beijo da Cristina Dinis

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