2009-03-16

Paris XXI


The proposals by Richard Rogers' group aims to unite Paris's disparate communities.
Photograph: Rogers Stirk Harbour + Partners


França possui uma larga tradição de obras de regime. O Palais de Versailles, l'Arche de Triumphe, Centre Georges Pompidou, a Pirâmide do Louvre, l'Arche de La Defense, o Musée du quai Branly. Edificadas por ordem de reis, imperadores e presidentes, todos eles personificam a grandeza da nação na imortalização do seu autor moral. Chegou a vez de Nicholas Sarkozy "instituir" a sua obra de regime. Contudo ele consegue ir mais longe promovendo uma revolução urbana para Paris quase a jeito do Plano Hausmann do século XIX. Foram consultados arquitectos franceses e internacionais para elaborarem ideias para a Grand Paris do séc XXI - projectando-a moderna, sustentável e mais humana. Existe uma magnífica oportunidade para arquitectos e urbanistas, sem esquecer outros intervenientes (especialistas sociais, associações, habitantes) num enorme desafio, em pensar e redesenhar uma cidade - tão somente a cidade mais visitada do mundo - de acordo com os novos conceitos urbanos, habitacionais, vivenciais, sociais e ambientais.

Se tudo é design, tudo também é política. O modo como a sociedade e o poder político interagem define como ambos constroem a sua identidade individual e colectiva, os seus propósitos e objectivos. As obras de regime, por mais transversais que sejam no seu uso e importância pública, são evidentemente armas políticas sem contestação.
A sede de querer ficar na história por se ter feito isto ou aquilo e, seguramente mais do que nunca a frase "à grande e à francesa" estará tão bem aplicada, revelam a importância que sucessivas presidências francesas têm (tal como os regimes anteriores) em deixar marcas físicas, especialmente na capital, é deveras curioso. Mudar leis, elaborar outras, não é marcante o suficiente. O ímpeto de deixar um qualquer sólido na urbe (as esculturas não contam para este campeonato), não é exclusivo de franceses. A necessidade de afirmação, o avolumar do ego ("eu fiz isto"), o desejo de imortalidade, são aspectos que definem o carácter humano, sendo exponenciado quando se detém "o" poder. Assim, estas construções arquitectónicas são demonstrações de Poder, tal como as Pirâmides o foram. E Nicholas Sarkozy terá o seu nome associado à renovação de Paris, marcando indelevelmente a cidade bem para lá do séc. XXI.


Parisian architect Roland Castro's vision for a greener Paris in La Courneuve.
Photograph: Castro Denisoff/AFP/Getty Images

- - - - - -
Comentário de Silvino Silva

É pertinente pensar que, apesar das mudanças de regime (ainda por cima desde, pelo menos, o tempo dos faraós), a Humanidade tenha aprendido tão pouco e continuemos a dar valor a um mar de parasitas narcisistas de dimensões impressionantes. Aquilo que eu gosto de designar por "vermes da história".
Pois, em vez de se valorizar o povo, a "arraia miúda" nas palavras do grande Fernão Lopes (na sua dimensão educacional e cultural, técnica e científica), verdadeiro interlocutor histórico, de forma a que este aprenda a conhecer o mundo (nas suas dimensões espacial e temporal-histórica) e, portanto, a conhecer-se a ele mesmo, e poder valorizar ambos, continua-se a deixar estes homens vulgares (porque realmente praticamente todos, com muito poucas excepções, almejam ficar na história, ser grandes e poderosos, famosos, e deixar uma marca imortal) desperdiçarem recursos absolutamente preciosos, na maior parte das vezes em autênticas inutilidades, por mais bonitas que estas possam ser.
Cidades "modernas, sustentáveis e humanas" são tudo palavras bonitas que servirão de pretexto para que, na prática, em Paris (e noutras cidades acontecerá o mesmo) vão-se traduzir em especulação imobiliária, acumulação de riqueza em cada vez menos gente, promoção de monopólios numa mão cheia de empresas dominadas pela mesma gente.
Vão surgir edifícios cada vez maiores e mais altos, que são tudo menos sustentáveis, pois tudo tem de vir do exterior e os gastos são enormes.
A questão da mobilidade em mega-urbes (excesso de trânsito) e a excessiva concentração de gente, com todos os problemas sociais que isso acarreta, a poluição, serão sempre problemas tremendos, com manifestas consequências nocivas para o planeta e a própria Humanidade. Ou será que vai haver a coragem de fechar Paris ao trânsito inútil, limitando-o ao mínimo indispensável e, em contrapartida, fornecer uma rede de transportes gratuita para todos, em que as únicas limitações deverão ser questões ligadas à higiene pessoal e apresentação, para manter padrões elevados de salubridade.
Será que o rio Sena vai deixar de ser aquela massa de "água" verde e pastosa, nojenta? Duvido!
Além disso, se realmente é para mudar Paris, então, primeiro que tudo, a cidade precisa dum curso global de Relações Públicas, pois o parisiense é, duma forma geral, pela minha experiência de contactos enquanto guia com outros povos (com portugueses, britânicos, italianos, espanhóis, brasileiros, alemães, suecos, finlandeses, japoneses, malaios, sul-africanos, canadianos, norte-americanos, angolanos, moçambicanos, cabo-verdeanos, russos, ucranianos, moldavos, romenos, checos, austríacos, húngaros, eslovenos, eslovacos, chineses, e até marroquinos, senegaleses... certamente esqueci-me de alguma nacionalidade de grupos que tenha feito), o "animal mais chauvinista à face da Terra, duma arrogância geral transcendental e insuportável, que tem a mania que a sua cidade é o centro do mundo, a melhor de todas, que tem tudo de melhor".
Paris tem edifícios espectaculares, mas está longe de ser uma cidade muito bonita, muito menos, "cidade-luz"; jamais trocaria a nossa Lisboa por Paris (e mais nunca fui um grande fã de Lisboa).

QUEM FAZ AS CIDADES SÃO AS PESSOAS, tudo o resto não passa de poeira para os olhos de ignorantes. E neste ranking o francês (e sobretudo o parisiense) está no fundo da tabela. É necessário reduzir o tamanho das cidades, torná-las mais humanas através da redução da sua escala, e não mais esmagadoras, símbolos pérpetuos da inveja humana, que quer ter uma urbe maior que a do vizinho só para se sentir maior e, portanto, supostamente melhor. É um fenómeno próprio do consumismo que se vê, por exemplo, na ideia generalizada de que possuir um "carrão" (grande, espaçoso e potente) é melhor do que ter um Mini, o que, dependendo das circunstâncias de cada um, não é necessariamente assim, até porque um carro grande consome mais e, por isso, mais dependente do exterior. O mesmo acontece com as mega-urbes.
- - - -
Meu caro amigo

De novo nos presenteias com um óptimo comentário. Contudo, compreendendo as tuas preocupações e, dando valor às tuas observações sempre pertinentes, devo acrescentar que dos projectos em causa existem propostas válidas, audaciosas e de facto objectivamente diferenciadoras para construir uma cidade nova.
Cada projecto criativo é, obviamente, sempre uma oportunidade de ouro para fazer algo novo. O desafio que se coloca neste caso - gigantesco é certo - foi considerado por muitos dos ateliers convidados como o projecto mais dificil e entusiasmante, inovador e percursor do seu trabalho. Porque o que podemos imaginar daqui é algo com muito mais importância e factor transformador que a edificação de Brasília. A capital do Brasil é toda ela monumental, expandindo-se sobre até aspectos principais da sua centralidade que pecam por defeito - as relações entre o ser humano, o espaço físico e o espaço natural. O projecto Brasília, mesmo que moderno e futurista, foi fruto das teorias urbanas e utopias sociais de 1950s. Os conceitos de cidade e urbanidade mudaram e melhoraram substancialmente nos últimos 60 anos, e só agora se vislumbra a possibilidade de serem aplicados com o apoio social e político. Se se observar alguns dos projectos, veremos que combinam em coerência a construção, natureza e habitante. Se o Homem faz parte de um todo, esse todo terá de fazer parte de si.

Mais do que nunca, pensar a cidade e apresentar soluções para nele vivermos é essencial. O modo como no futuro habitarmos neste planeta é definido hoje. Transformar as cidades pode ser uma tarefa hercúlea, mas é uma estratégia de habitabilidade que não podemos descartar. Com certeza que quem faz as cidades são as pessoas que nela habitam - mas é evidente que a arquitectura e o urbanismo molda o modo como essas pessoas se comportam e interagem. Renovar uma urbe não é um destruir-velho-construir-novo, é justamente por causa das pessoas, dos cidadãos, os habitantes das cidades, que pelos seus ideais, desejos, dificuldades, debilidades, e os valores de comunidade, trabalho, história que se pretende edificar um espaço digno para todos e o planeta em si.
Todos os factores negativos que rodeiam a construção serão forçosamente inevitáveis?

_