2008-08-18

O Urso saiu da toca




Há erros inocentes, erros exemplares e erros trágicos. Mas também existem erros estratégicos e erros de palmatória. Ou seja, a origem desta crise no Caúcaso foi provocada pelo presidente georgiano Mikheil Saakashvili, mesmo que depois de agressor inicial, se tenha tornado numa vítima que transcende as suas fronteiras nacionais. Mas foi uma excelente oportunidade para o Urso sair de vez da hibernação. A Geórgia subestimou a reacção russa, mas também acabou por cair na armadilha, cuidadosamente montada ao longo dos últimos quatro anos, em sucessivas provocações e ameaças subtis. Os motivos invocados pela Rússia são falaciosos, e incorrem no mesmo mau procedimento (invasivo) anteriormente desencadeado pelos EUA ao invadirem o Iraque...

A Abhkázia e a Ossétia do Sul não têm qualquer hipótese de retorno ao seio do Estado Georgiano. Há mais de uma década que ambas existem enquanto territórios independentes, e o facto das suas populações possuírem cidadania russa é tanto uma vantagem como um instrumento valioso para os tempos mais próximos.
Vejamos a realidade passada, mas concretizada ainda este ano: a declaração unilateral de independência do Kososvo face à Sérvia. Esta foi consequência inevitável (e previsível) de um precedente que muitos previram como perigoso para o futuro. O direito à autodeterminação está consagrado na Carta da ONU, mas a desagregação unilateral de países e territórios sendo ilegal, pode com o exemplo do Kososvo, repetir-se por exemplo no País Basco, ao de forma previsivelmente sangrenta no enclave azeri de Nagorno-Kharabak na Arménia, e na Moldova.
Na verdade a NATO fez o que a Rússia fez agora, os motivos e os meios assemelham-se, e as consequências imediatas também. Contudo, se nós ocidentais desconfiamos da agenda política russa, nunca estes confiaram na nossa.

O controlo do Cáucaso é vital para a Rússia assumir de novo o seu papel imperial, algo que Georgianos, Arménios e Azeris claramente receiam. Mesmo a Ucrânia pode ter na Crimeia (base da Frota Russa do Mar Negro) um pretexto apetecível para recontros mais perigosos. Até onde irá esta Rússia que durante muito tempo apenas a máscara se queria ver. A verdadeira face das estepes nunca esteve totalmente escondida e apenas os jogos de poder tentavam adiar um cenário negativo.

Vemos agora a verdadeira Rússia, a nova potência renascida concebida ao longo dos dez últimos anos. De facto, tudo parece um plano muito bem delineado, com determinadas etapas muito bem estabelecidas, e onde certos acontecimentos apenas fizeram avançar mais rapidamente para a concretização dos objectivos - o alargamento da NATO e da UE para Leste, os mísseis na Polónia, o campo de radares na República Checa.
São inúmeros os casos que podem demonstrar a falta de fé (democrática) por parte da Rússia. As anuais chantagens energéticas de inverno, que colocam a Ucrânia e a Polónia em posições débeis, e em reacções embaraçosas das também dependentes Alemanha e França. O assassinato de Litvinenko em 2005 (não é dificil suspeitar do Kremlin, e quanto mais tempo passa...). A "ilegalização" do British Council na Rússia. O ataque cibernético à Letónia e este ano à Geórgia. Em 2003, o então Presidente Putin afirmou que "o maior erro geoestratégico do século XX foi o fim da União Soviética". A prisão de indivíduos "perigosos e criminosos" para o Estado. A guerra na Tchetchénia. O assassinato de jornalistas, entre as quais Anna Politkovkaia. E finalmente, a troca de lugares Putin-Medvedev, foi obviamente uma cena primordial de um filme cujo enredo se vislumbra cada vez melhor.

A presença em Tblissi dos líderes da Ucrânia, Polónia, Letónia, Estónia e Lituânia, numa manifestação de apoio ao Presidente georgiano, foi uma clara e desafiadora posição de força contra a intervenção e as reais intenções da Rússia.



Logo, o assunto é mais grave do que parece. Os receios de uma nova Guerra Fria não são infundados, apesar dos desmentidos. Assistimos a uma alteração geoestratégica clara com a posição desafiadora da Rússia, e as hesitantes reacções europeia, e claramente duras dos EUA. Tal, que o endurecimento da situação favorece a posição do candidato republicano John McCain, quando o que mais se deseja são atitudes de mudança e paz possíveis com Barack Obama como Presidente dos EUA.
O problema prende-se em como agir para não fazer zangar o urso. Não o podemos diabolizar (grande parte da responsabilidade da ordem mundial deve-se ao erro Bush-Cheney), mas também não devemos ficar indiferentes à Rússia que agora se apresenta. Mais uma vez nos corredores do poder, a Realpolitk toma posições.



Para acompanhamento directo e explicativo do que acontece na Rússia, o blog do jornalista José Milhazes oferece excelentes visões e claras notícias do país das estepes.