2005-11-04

Jusq'ici tout va mal



O que "La Haine" - filme maior de Mathieu Kassovitz - demonstrava, os últimos dias parisienses trouxeram ao rubro níveis de confronto e destruição nunca vistos. Faz-me recordar Los Angeles após o espancamento de Rodney King, onde o caos e a violência tomaram conta das ruas e do status quo político e social. Milhares de pessoas vivem em arredores-dormitório, do qual Paris apenas poderão vislumbrar num esporádico passeio dominical, ou através das paredes frias do metro, onde a luta diária por condições de vida decentes e promissoras tem, ao longo das últimas décadas, vindo a diminuir. O aumento das comunidades emigrantes e sua descendência, que apesar de se identificarem como franceses, se vê mais pobre, mais desprezada e culturalmente deslocada, têm estado longe dos parâmetros-base do Ocidente - Liberté, Igualité et Fraternité. Estes não têm actuado como verdadeiros princípios de integração e desenvolvimento, absolutamente primordiais na construção de sociedades justas e vantajosamente multiculturais, mas onde ambas as partes possuem culpas diferentes.

As tensões vividas ao longo de anos, numa espécie de Guerra-Fria com episódios perigosos, escaparam de uma aparente Caixa de Pandora. Desde há uma semana que os arredores de Paris, nos novos-velhos guettos, jovens e forças policiais se confrontam naquilo que mais tarde ou mais cedo se receava que pudesse acontecer. A desconfiança, o ódio, o desespero, a ignorância, a estupidez e a desesperança sentem-se em cada grito, em cada rua esventrada, em cada carro incendidado, em cada loja destruída, desencadeada por jovens vazios de presente, vazios de futuro. A intolerância, a ineficácia reactiva, a hipocrisia e a precipitação observam-se nas palavras, nos olhares, até mesmo no silêncio, dos políticos. A relação de forças não deve ser unicamente tomada como autoritarismo versus delinquência, com resultados desejadamente imediatos, onde cada noite mais é um vidro partido no frágil telhado do governo presidencialista, mas também deve ser considerado como um dano sério da estrutura e estabilidade democráticas pelo qual uma sociedade se deve reger.

É importantíssimo conter esta espécie de intifada parisense, que noite após noite intensifica e divide ainda mais a sociedade francesa. Mas o que conta mais é depois - resolver definitivamente as carências sociais de uma parte da população que cada vez mais conta para o todo da nação. Filhos de um país que os afasta para os confins da sua ascendência exterior. A transformação das nossas sociedades uniculturais e fechadas para encontros diversos e cruzados de tão díspares agrupamentos culturais tem provocado choques vários - por ignorância estúpida ou incapacidade receptiva diversa - mas onde as vantagens e a riqueza para todos suplantam em muito as desvantagens. Ao fim e ao cabo, ao longo da História da Humanidade, os enlaces culturais e civilizacionais foram um dos motores do nosso desenvolvimento, então por que há-de ser mais difícil agora? As causas de identidade e de pertença têm hoje uma conotação negativa, assente no individualismo igualitário e desprezante, absolutamente contraditórios num mundo cada vez mais aberto e intercambial. Isto leva-nos às novas-eternas questões da globalização, mas à parte isso, não será uma reacção instintiva a tanta abertura, fecharmo-nos e ficarmos quietinhos no nosso canto, inertes e conscientemente longe do que não queremos que nos mace? No entanto não podemos viver assim. Se cada um tem alguém próximo, ou uma família, não estará o próximo, como Jesus Cristo defendia, como alguém que de facto precisa de nós, e que nós deveremos auxiliar?

Falar é fácil, escrever é-o por vezes, e o inferno está cheio de boas intenções, mas o facto é que o mundo está coberto de realidades infernais. Quando caimos no enganador caminho da violência, onde estamos afinal enquanto civilização, como pessoas? Fazer a guerra é fácil, construir a paz é muito complicado e exemplos, velhos e recentes, não faltam. Onde como aqui, se vive; ou onde por aqui, nem todos os males se sentem, devemos chegar ao fim do dia e exclamar como o protagonista do filme: jusq'ici tout va bien?

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