2009-10-23

muito barulho para nada



Tudo é questionável. Dificilmente existem verdades absolutas, frequentemente elas se revelam absolutamente falsas. O que poderá existir sim são factos absolutos, tal como o dia se segue à noite, e a Lua orbita a Terra. Questionar não é denegrir, cair na agressão. Pode por-se em causa, argumentar e demonstrar com outra visão, outra leitura, outras provas. Foi assim que fez Richard Dawkins com a sua tese "The God Delusion", não isenta de polémica claro, porque tocar na religião é assunto delicado.


Eu gosto de José Saramago. Aprecio a escrita, louvo-lhe a frontalidade. "O Ensaio sobre a Cegueira" e "Ensaio sobre a Lucidez" são romances pertinentes e escrutinadoras das fraquezas, dissonâncias e direitos do ser humano numa sociedade estranhamente menos comunitária do que (pr)entende ser. Até hoje "O Evangelho de Jesus Cristo" se mantém como uma das obras que mais gostei de ler. Entrar numa outra realidade, confrontarmo-nos com outras possibilidades não nos comete contra isto ou aquilo, apenas nos potencia enquanto humanos ao direito e ao dever da dúvida e da busca do entendimento. É do conhecimento geral a condição de ateu de Saramago, que não advém necessariamente por ser comunista. Contudo, quando afirma "posso ser ateu, mas não sou tolo" ao justificar o conhecimento da Bíblia para escrever esta obra e o mais recente "Caim", a sua análise verbal nos últimos dias assenta sobre considerações polémicas desnecessárias e algumas delas falaciosas roçando uma visão tão anti-religiosamente fundamentalista quanto o religioso mais fundamentalista. Dizer que Deus desde o sétimo dia de descanso nada fez é uma ideia tão disruptiva como engraçada. "Isto tem algum sentido?" indicia que os crentes são idiotas. Com "a Bíblia é um "manual de maus costumes" e um "catálogo de crueldades" Saramago está a confundir a árvore com a floresta. Primeiro, o Deus castigador a que se refere pertence somente ao Antigo Testamento, e sim está repleto de regras e atitudes ignóbeis. Segundo, não é essa a leitura essencial dessa obra magnífica, e digo-o não por razão religiosa, mas pela imensa força cultural que teve e tem ao longo de milhares de anos e milhões de crentes em todo o mundo, sendo comum a cristanismo, judaísmo e islamismo. Mesmo que matar em nome de Deus tenha sido o maior erro da Humanidade.


José Saramago não foi intelectualmente sério, e ele sabe-o. A Bíblia é um conjunto de histórias diversas, algumas factuais, muitas delas simbólicas onde, como diz Carlos Fiolhais no Público "tão errado é levar a Bíblia à letra, aceitando o que lá está" como "recusando o que lá está". Cada um acredita no que quer, e entende como lhe aprouver. A nossa liberdade individual permite-nos isso. E questionar a fé não deverá sê-lo com palavras menos honrosas e desrespeitadoras. "Lê a Bíblia e perde a fé!" não é necessariamente ofensivo, mas demonstra novamente com laivos de intolerância que quem acredita está tão profundamente errado como dois mais dois serem igual a três.

As reacções mais loucas vêm de quem pode não merecer crédito, como Sousa Lara, o famoso "censor" que faria novamente o mesmo e com esta obra também, e que no fim Saramago terá o seu castigo adequado, e um eurodeputado do PSD que insta Saramago a renunciar à nacionalidade portuguesa. Quanto menos humorados e mais fechados na sua fé, mais a afronta sentida, o que não abona a favor dos próprios nem para a discussão.

No fundo andámos estes dias a discutir patetices, como na crónica de Vasco Pulido Valente que arrasa Saramago ("...tem 80 e tal anos, coisa que não costuma acompanhar uma cabeça clara") - que discordo - e todos aqueles que se escandalizaram com um farsa ("extraordinária importância que lhe deram criaturas com bom senso e a escolaridade obrigatória").


"O Homem inventou Deus e escravizou-se dele" não é novidade nem exclusivo de José Saramago mas, ao aparentar de tempos a tempos estar contra Deus no fundo está a aceitá-lo mais do que a negá-lo. Somos todos frutos de uma realidade social e cultural judaico-cristã, que o próprio autor não o nega, eu próprio com conhecimento sobre a matéria tenho muitas dúvidas. Mas quando 95% da população mundial se afirma crente, podem os restantes 5% bradar que a maioria está errada? Mais aceitável será o ser humano poder viver sem religião mas que não pode viver sem espiritualidade.


O livro não deverá ser tão polémico como as palavras proferidas pelo autor. Li o primeiro capítulo em pré-publicação e achei-o fresco, livre, engraçado e pertinente, ficando com muita vontade de ler o resto. E com a técnica "falem bem ou mal, desde que falem" a promoção extra do livro está garantida, e no fim ver-se-à que, nas palavras de Shakespeare, foi muito barulho para nada.

_