2011-09-02
Livraria 107, uma segunda casa
Livros, livros e mais livros ao meu redor é como o Tio Patinhas na sua piscina de dinheiro. Enquanto vivi nas Caldas, a Livraria 107 era o meu espaço privilegiado, particularmente as visitas e compras aos sábados de manhã. Uma segunda casa. O Gil Vicente adoptou literalmente a livraria como sua casa, tornando este gato o mais famoso guardião da literatura. Vários anos passaram, e quem reina agora é a Florbela Espanca, gata dócil e tímida. E neste periodo de dez anos ausente noutra cidade, a minha assiduidade reduziu drasticamente. E pelos vistos, por muito mais gente. Por causa da concorrência desleal dos CTT, dos preços imbatíveis dos supermercados, da recente Bertrand fria mas conveniente por existir num centro comercial, das crises económicas que se avolumaram. Os negócios evoluem com a sociedade, os mercados, os consumidores, esta é a dura realidade. No confronto de pequenas e carismáticas livrarias de proximidade versus marcas-franchising de grandes impessoais espaços de venda de livros, no fim vencerá o concorrente maior.
Mas nunca poderia a 107 perder a sua referência enquanto espaço emblemático; nunca pelas pessoas que lá trabalham. Porque esta singular livraria, não vale apenas pelos livros, pela cultura, pela sua essência enquanto espaço de literatura, pela dedicação das suas funcionárias - a Livraria 107 é igualmente a Isabel Castanheira, senhora extraordinária, que a criou na década de 70. É graças a ela que existe cultura nas Caldas, os encontros com escritores, as tertúlias, os autógrafos, o tranquilo e caloroso abraço daquela loja, exígua mas nunca pequena demais para albergar um imenso universo criativo.
A Isabel costuma dizer que a minha mulher (e eu) a tornámos numa revolucionária. Estávamos em Setembro de 1999, no instante inicial da carnificina e terror que em Timor eclodiu dias após o referendo para a independência. Pela origem timorense da Isabel, a minha mulher perguntou-lhe se iria fazer algo. Não, respondeu ela. Mas depois aquele "não" desconcertou-a de tal forma que a despertou para agir. Organizaram-se vigílias-protesto na Praça da Fruta. Convidaram-se escritores timorenses. Desenhei autocolantes com mensagens contra a situação e pelo fim do conflito. Fiz o design de um cartaz e dos bilhetes para um concerto de angariação de fundos que se realizou nos Pimpões, com o Maestro António Vitorino d'Almeida como um dos participantes. Mobilizámos os amigos e praticamente toda as Caldas, num movimento espontâneo e único de solidariedade e paz, à semelhança com os que floresciam por diversas cidades do país. E foi muito bom contribuir e viver aquela experiência, ainda para mais quando poucas semanas depois a intervenção da ONU com tropas australianas terminou a repressão na ilha-crocodilo.
Como sinal de gratidão, a Isabel ofereceu-me um livro que desde então guardo com orgulho e carinho: "Mar Meu", poemas do heroi Xanana Gusmão.
Um dos meus sonhos (daqueles inconcretizáveis) seria adquirir todo o centenário edifício e transformá-lo integralmente numa diversificada imponente livraria. Nunca contei isto à Isabel, mas seguramente que ficaria feliz com uma ideia destas, a partilha da paixão pelos livros e os leitores. Os dois primeiros pisos seriam espaço livreiro, mais área e conforto disponíveis; o último piso ofereceria um local para tertúlias, apresentações de livros, pequenos concertos, regados por um aprazível bar, e convidando à felicidade de noites únicas. Assim, a Livraria 107 se transformaria num espaço ímpar na cidade, onde a cultura e o habitual encontro nos abraçariam como nunca antes visto.
Tudo que tem um princípio, tem um fim. E um fim aproxima-se também para a 107. É obviamente com tristeza que se assiste ao fechar deste lugar de referência. Mas espaços de referência sem dinheiro não têm futuro, disse-me a Isabel há semanas. Em setembro a porta fechará pela última vez, afinal um acto de coragem que sempre a caracterizou. Sentiremos a falta daquelas prateleiras recheadas, daquela luz suave que entrava recortada entre os livros em destaque na montra, e claro da simpatia da Isabel que sempre nos encantou, e das inúmeras oportunidades que nos proporcionou com a livraria. No entanto, sentimo-nos honrados e orgulhosos por, ao longo destes muitos anos, termos contribuído no possível enquanto clientes e amigos, não apenas nós mas seguramente muitos dos que lá entraram.
Obrigado Isabel, e muitas felicidades para o futuro.
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Gazeta das Caldas: Livraria 107 não resiste e está em risco de fechar
By
Victor Barreiras
Etiquetas:
Literatura,
metropolis
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