2011-12-22

O Ouro dos Corcundas

"Este é o escritor que conheço" disse-o com um entusiasmo de menino ao apresentá-lo. Conheço Paulo Moreiras há pouco mais de dois meses e a minha paixão pelas palavras escritas encontrou no seu mais recente livro uma formidável surpresa. Chama-se "O Ouro dos Corcundas" (A saga de um heroi anónimo que por amor mudou a História de Portugal) editado pela Casa das Letras / LeYa.
No estado em estamos, nunca tão esmagador foi o uso das palavras. Crise, recessão, dívida, canalhas. E no entanto vivemos obcecados e oprimidos com números, num à-beira-do-abismo permanente sobre um rectângulo obtuso qual meia-jangada à deriva sem nexo e sem destino consequente. Perdeu-se o rumo, perdeu-se o espírito e perdeu-se a beleza. Todo este deslumbramento atroz tenta afastar-nos do equilíbrio das coisas, do belo das formas, da poética do ser.

É o regresso à beleza das palavras e seus gloriosos significados que este romance histórico tem de surpreendente. "É uma história de amor entre um ladrão e uma puta" disse-me o Paulo numa síntese assombrosa e que é contada com uma delícia de esplendor e elegância. O acrescento aqui é o acaso desta relação amorosa ter impacto no Portugal de 1834 no meio das lutas liberais. É feliz este jogo entre a ficção e a História no qual "O Ouro dos Corcundas" se constroi, coerente e dinâmico, através de uma prosa plural, poderosa, humorada, cruel, descritiva, cinemática, cativante e assertiva. Ao lermos mergulhamos em pleno no contexto da época, mas igualmente no modo da literatura oitocentista e picaresca no emprego rico das palavras (muitas resgatadas pelo autor ao esquecimento secular) e das metáforas que pintam retratos fortes para intensificar a narrativa.

Bandorrilha, petimetre, ricanho, caramunhas, beberrónia, perlenga, cascabulhando, caterva, são alguns exemplos de como a língua portuguesa é um tesouro de dimensão imensa, caída hoje em tanto desprezo, assalto, e pancadaria que valorosos são os que lutam para a preservar. Enquanto isso, não tardemos ao humor que habita neste romance: "O Pasquino tinha perdido a língua mas não os colhões, pois era mau como uma cesta de cobras e, em menos de um credo, se algum inoportuno lhe aperreasse o espírito, despachava-lhe umas valentes lambadas nos focinhos, sem tugir nem mugir".

A narrativa é também uma história sobre a inveja, maldade inscrita no íntimo humano, provocadora de enganos e tropelias, vinganças e batalhas, lutas de poder e egoísmos destruidores. A primeira frase do livro cumpre o seu dever de sedução e conquista do leitor: "Desde o princípio do mundo que a inveja cega os homens e toma, nas paixões da alma, vaidoso domicílio." Inegavelmente reside em nós esse pecado primordial, corruptora da humanidade onde a mediocridade se alimenta. Neste desvalor se sustenta o aprisionamento da verdade. Libertemo-nos pois da inveja.
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